quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Partir...


Manaus é uma cidade especial, por ser isolada na selva e margear o maior rio do mundo... É uma cidade portuária... Portos distantes dos oceanos, mas beirando enorme curso de água doce. Existem dias que por mais que não queira, o desanimo desaba sobre a alma... Parece que a gente se olha num espelho imaginário, e diz para si: será que foi isso que sonhei? A resposta é não. O destino é um cavalo solto, se você não o guia, com as rédeas, esse cavalo que chamam de destino vai te transportar pra algum lugar – qualquer lugar! Cavalo independente. Destino sem rédeas, pra onde vai o vento. Fui tentar alguns números financeiros para a indústria. Dia lento, quente e sem vendas... Celular tocando, DDD de outro estado, era a cobrança! Vendas! Mas o dia não estava pra vendas... Choradeira de comerciantes: o produto não ta saindo! O comercio ta fraco! Pedido? Passa para o mês... Só faltava visitar uma cliente naquela região central de Manaus. O calor castigava e batia os 39 graus. Deu o horário de almoço. Teria duas horas de aguardo para voltar com as visitas. A bateria do celular estava nas últimas. Só assim eu me desligava das cobranças ao menos por aquele momento. Sentei na praça para beber sua sombra, ascendi um cigarro e fiquei observando a vida passar, os bêbados ressacados, mendigos, desocupados e flanelinhas... Estava pensando em algo para aumentar o faturamento, sair do rastejo... Imaginava algumas formulas de tornar a vida mais segura. Ganhar dinheiro não é fácil! Desci a ladeira que levava a um dos portos... Não estava com a mínima vontade de almoçar. Eu gosto de comer peixes amazônicos nesses mercados portuários, que qualquer patricinha teria nojo. Mas com o calor e a tensão do trabalho na busca por resultados, era impossível o apetite. Uma garota com dentes mal conservados passou vendendo suco de laranja, comprei 300 ml por 1,50... Devorei o líquido gelado com ânsia, mastiguei os gelos e ascendi outro cigarro. Fui até a balsa imóvel que atraca os barcos que ganham rio adentro... Desci e decidi matar o horário de almoço por lá, observando os navios que estavam prestes a partir a qualquer momento. Saberia que breve meu telefone móvel tocaria novamente. Sentei em uma cadeira, o vento até que aliviava a tensão e o calor sufocante... Pedi uma água com gás. Um barco estava bem perto de partir... Parecia me convidar, com um sorriso misterioso, a subir em suas acomodações precárias, mas aconchegantes. Por curiosidade perguntei pra onde o barco iria. O marinheiro respondeu para São Gabriel da Cachoeira. É a cidade mais longe subindo o rio Negro. São sete dias de viagem flutuando por dentro da maior selva do mundo, ao sabor do rio Negro. Deu vontade imediata de embarcar nesse navio de madeira, não confortável, mas de três andares. De São Gabriel, iria para onde soprasse a direção do vento. Senti um arrepio seguido de um desejo inconseqüente e libertino. Partir só com a micharia no bolso, a roupa do corpo... Sumir do mapa. Deixar tudo sem saudosismo e pena. Talvez a saudade daria sinal de existência meses depois, que seria natural, mas já era tarde, eu não retornaria. Não tenho filhos. Minha mulher iria pirar. Ligar em vão insistentemente de baixo de uma nuvem de desespero e dúvidas... Ligar, ligar, ligar... Em vão. Pois eu jogaria o celular nas profundezas das águas escuras do rio Negro. Ficaria off-line. Ela iria ligar pra minha casa no Recife, iria ao IML, hospitais, delegacias, hospícios... Será que ele ficou doido? Iria fazer uma sindicância nos portos, com um retrato meu. Ligaria para os poucos amigos que fiz na capital amazônica. Meus pais iriam enlouquecer de preocupação... Mas eu logo mandaria um email, de alguma lan house qualquer, de conexão lenta, avisando que esta tudo bem, sem informar meu paradeiro! As pessoas que cativei iriam se acostumar, se conformar, depois de muito insistirem por uma resposta. Breve eu seria esquecido e substituído. Pois tudo na vida é assim, sentimentos são perecíveis. Xingariam-me de filho da puta, escroto, sacana... Porque ele sumiu? Deixou tudo! Que porra deu nele? Irresponsável, não tem consideração com quem o ama? Deixou tudo sem aviso prévio! O trabalho, a firma, os pequenos impostos, as contas telefônicas, os clientes, as licitações, os pequenos problemas diários, os minúsculos compromissos... Há dias que o gerente da indústria liga: Cadê esse cara? Os números estão baixos! Deixou o computador, as roupas, a motocicleta, os CDs de rock, o gato, o cachorro... E nem uma carta! Filho da puta! E principalmente o coração de uma pessoa que o ama... Ama! Esse canalha não merecia meu amor. E eu, já dentro da nau, olhando as águas escuras do rio preto da cor do petróleo, saberia que lágrimas tão negras quanto esse rio, estariam derramando por mim. Eu haveria de pagar pelas noites mal dormidas dela, em claro, procurando pela internet alguma noticia ou resposta para uma atitude furtiva e inesperada! Mas eu não voltaria... Estaca zero! Confundiria-me nas ruas de Manaus, com outro barbudo... O seguiria, depois teria a decepção do engano. Todo sofrimento seria temporário... Haveriam de me esquecer, pois diante uma atitude covarde, eu não mereceria consideração e muito menos respeito. Um dia outro barbudo habitaria meus modestos aposentos, que apenas foram emprestados para mim. A minha fotografia seria rasgada e substituída... Onde eu estaria? Só o vento saberia ou o cavalo sem rédeas. Meus pequenos objetos seriam enviados para o Recife, pelo sedex, ou fret aéreo, para a casa de meus pais. Ela exterminaria as lembranças com muita eficácia! Pois seria necessário exterminar essas coisas, essas coisas... Que só trazem mais coisas e coisas. Só Deus ou o Diabo saberiam como eu estaria! E eu seria esquecido ferozmente. Mas... Tudo só eram pensamentos ilegais, imaginações, suposições... O rio Negro estimula as imaginações clandestinas. A culpa é do rio Negro. Eu sabia que no fundo não era macho pra isso! Não sou o Roberto Carlos, mas esqueci de um detalhe, eu também a amo. Um sábio me disse que a liberdade de um homem não tem preço. Tem sim! Tudo nessa vida tem um preço. É que nem uma bula de remédio, com seus benefícios contra a dor, mas no verso tem suas contra-indicações e efeitos colaterais. Bateu às duas da tarde, haveria de correr para pegar o cliente em seu estabelecimento comercial.

Gamma

fotografias: porto de Manaus e rio Negro. Por Gamma.

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Um comentário:

Adlan Alexandre disse...

Muito bom, velho. As vezes tanto faz ser culpado ou ser capaz tanto faz..o rio, o trem, o destino la vai com o menino, la vai a vida rodar..